“Não é câncer, minha filha, não é câncer!”
Meu vô dizia com entusiasmo e alívio. Ao ver sua alegria, também fiquei feliz, mas as palavras me eram um pouco confusas. Provavelmente, devido ao fato de possuir a mente ingênua e delicada de uma criança, pois possuía em torno de nove anos de idade na época. Bom, a história tem início quando me mudei para Sinop, interior de Mato Grosso, aos seis anos de idade, para morar com minha mãe e meu padrasto. Cidade nova, e muito menor. Nova escola, novas amizades, nova conjuntura familiar. Novo tudo.
Me recordo de bons momentos, como quando ia ao mercado com minha mãe de bicicleta, ou quando íamos tomar sorvete em algum lugar. Gostava muito de brincar de bonecas e desenhar. Era muito criativa, e, também, comunicativa. Devido ao tempo de trabalho de minha mãe e padrasto, às vezes ficava sob os cuidados de uma babá ou até mesmo da vizinha, Lúcia. Ela possuía vários coelhos e trabalhava vendendo verduras e legumes, era uma diversão para mim. Também cheguei a ficar sob os cuidados de outra babá chamada Leide. Lá, ficava com mais crianças e desfrutávamos de cajus frescos que colhíamos no enorme cajueiro em seu jardim.
Outra vez, na casa germinada que morávamos, decidi que iria à lua. Colei várias folhas de papel, uma seguida da outra, busquei uma boneca e pedi para que a primeira babá citada (não me lembro de seu nome) colocasse fogo no último papel, pois isso iria ativar meu foguete. Ela riu, e acendeu para me mostrar que não funcionaria. É, o fogo apagou tão rápido como começou, e, como você deve imaginar, minha viagem não deu certo.
Ao mesmo tempo, assim como muitas histórias, também há recordações negativas, e aqui temos a vida vista pelo ângulo de uma criança. Em algum momento, que não me lembro ao certo, passei a apresentar quadros recorrentes de diarreias, vômitos e dores abdominais. Rapidamente, também passei a perder peso, e a médica pediu que o consumo de alguns alimentos fosse restringido – como refrigerante, por exemplo. Essas restrições me deixavam profundamente confusa, e triste. Não podia tomar sorvete, comer bolo, chocolate, e muito menos tomar refrigerante. Me deram leite de soja, e não achei o gosto ruim. Mas o que estava acontecendo?
O peso na balança continuava a cair, as idas ao banheiro persistiam. O que estava acontecendo?
Deu-se início às férias escolares, e embarquei num ônibus rumo à minha cidade natal. Iria passar o período na casa dos meus avós paternos, que haviam me criado por uns anos antes da mudança para Sinop. Me despedi de minha mãe, de meu padrasto, meu irmãozinho e meu hamster de estimação. Espera vê-los novamente em breve, e retornar à rotina que havia, de certa forma, me acostumado. Eu já estava há mais de 20 horas viajando pela estrada, acompanhada
por meus tios, enquanto contava as paradas restantes para reencontrar meus avós.
Até que enfim, atingimos o destino, e eu me apressei à porta afim de vê- los. A porta se abriu, e lá estavam eles, com sorriso em seus rostos. Sorrisos esses que duraram apenas alguns segundos, e já logo se transformaram em espanto.
“Gabriele! O que aconteceu com você?”
Eu estava muito magra. Tinha oito anos de idade e não conseguia atingir os 20kg de forma alguma. Fui à casa deles, e logo as consultas médicas se iniciaram. Meus avós estavam constantemente preocupados, e meus sintomas permaneciam os mesmos. Não conseguia comer muito. Me recordo de um dia estar com muita vontade de comer cachorro-quente, e meu vô, que desejava muito que eu conseguisse comer algo, comprou um para mim. Nos sentamos na mesa da cozinha e repartimos o lanche em dois, e, entusiasmada, disse:
“Vou comer metade, vô, vou conseguir!”
Comi. Com bastante vontade, mas também com medo. E não deu outra. Em alguns minutos, eu já estava deitada no chão da cozinha em posição fetal, com fortes dores. Eu gritava e chorava. Até que, então, acabei vomitando. Vi meu avô entristecido na cadeira. Não compreendíamos o que acontecia. Exames também começaram a ser feitos. Me recordo de ficar muito tempo em jejum, e de me acostumar com o fato de fazer exames de sangue. Eu não tinha medo de agulhas, nunca tive. Inclusive, ficava empolgada e dizia que seria médica quando crescesse. Quando ficava muito tempo em jejum, passava o tempo sonhando com um lanche do Mc Donalds. Infelizmente, por muitas vezes o preparatório envolvia algo pior que jejum: ingestão de contraste. Eca. Um líquido
branco e muito grosso, com um gosto que não me agradava nem um pouco. Me lembro de chorar muito enquanto tomava, e de segurar a mão de minha avó. Ela apresentava um semblante entristecido, mas sempre continuava a me encorajar.
“Vai, Gabriele, minha filha. Tampa o nariz e toma.”
Essas estavam sendo minhas férias. Definitivamente não era o que eu havia planejado – muito menos meus avós. Foi-se, então, decidido que eu não retornaria para Sinop, pois a saúde era melhor em São José do Rio Preto, e meus avós, que eram aposentados, teriam mais tempo para continuar me levando em consultas médicas e exames.
E lá estava eu de novo: Nova escola, novos amigos, nova conjuntura familiar. Mas, dessa vez, tinha algo de diferente: uma batalha contra uma doença, que até então não havia sido diagnosticada. A nova escola era agradável – coincidentemente, a mesma que frequentava em Sinop. Fiz amigos incríveis e estava me adaptando bem, mas aprendi outra maneira de me adaptar: esconder que sentia dor. Me tornei muito boa nisso, aliás. Levava lancheira recheada de comidas gostosas, e distribuía aos colegas de sala. Não queria comer. Além da falta de apetite, comer
também poderia representar uma possível dor. Comecei a fazer terapia, um processo interessante em minha jornada –
este será um assunto abordado de maneira mais profunda em outro texto, futuramente.
O palpite dado pelos médicos acerca dos sintomas e alguns exames já exibidos era de tumor no intestino, ou seja, estava passando por uma investigação de câncer. E a resposta veio por meio de uma ligação, enquanto almoçava com meus avós. Na cozinha, tinha um telefone com fio branco que ficava ao lado da mesa de jantar. Ele tocou, e meu vô atendeu. Após vibrar com o fato de não ser câncer, me lembro de suas palavras, respondendo à pessoa que falava com ele ao telefone:
“Doença de Crohn? O que é isso?”
Bom, agora tínhamos um nome, e o início de uma nova jornada.